quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A GRANDE MACABÉA


Sentada diante da garrafa de cerveja, o rosto afogueado, os olhos brilhantes, a versão de Macabéa. Quem a visse não adivinharia que caminhou desde o Itaim Bibi (da Tabapuã) até o Higienópolis (Veiga Filho). Mostrou ao garçom no mapinha que carregava consigo indicando com o dedo a proeza que tinha acabado de realizar. O moço estava realmente impressionado. Uma senhora daquela idade! Macabéa maratonista. Fashion. Nome de marca: macabéa.com.
Atravessou casas, ruas, bairros inteiros, mendigos, viadutos, bares. Obras, operários, carros, tapumes, e mais carros. Uma passarela gigantesca quase no fim da jornada. Respirou com força e fez ritmo de campeã, com o contrato assinado debaixo do braço, a bolsa "perto do coração selvagem", e o casaquinho preto pendurado para qualquer eventualidade.
Outrora morta agora era glamour, um pouco mais velha e salvada do incêndio que destruiu pequenas partes do seu corpo. Sobreviveu às forças. Então sentiu pela primeira vez o cheiro de um judeu (cheiro de Deus, pensava ela, que tinha mania de cheirar tudo). Eles vinham na direção contrária e ela inspirou bem fundo e aproximou o nariz do braço do jovem de camisa branca e calça preta. Adorou aquele cheiro. Really! Tinham dito que "eles" tem um cheiro peculiar. Já sabia do cheiro de diferentes raças: pretos, brancos, amarelos, asiáticos, africanos, nordestinos e até de ingleses, mas, de judeu, nunca! Foi o cheiro que mais gostou, enjoyed! Foi pertinho do cheiro de Deus. Blasfêmia? Não sabe.
Atravessar preconceitos é o mais difícil, pensava Macabéa. Atravessar corações é duro. Mas, se não conseguir um lugar na poltrona dos nobres, pelo menos um lugarzinho na platéia...Impotência. De repente buscava palavras para substituir a simplicidade das suas. "Abraçar a irrelevância". Fazer arte pela arte.
À parte as bananas que fcaram esquecidas em cima da geladira, nada mais a preocupava. Sim claro, tinha que produzir alguma tela, uma que fosse. A galerista pressionava.

"Na cidade há setenta mil pintores, disse a senhora". - Setenta e um mil, completou Macabéa. Era apenas mais uma com pleno direito ao exercício de sua liberdade. Diferente do papel daquela mocinha inserida no contexto, cujo papel era a fotografia. Muito rímel e sobrancelha pálida, batom rosa e pó, muito pó, para que o brilho não saisse na imagem.

O homem na mesa ao lado furava com o dedo um buraco enome no pão onde entupia as coisas que iria comer (a casa do João de Barro). Um outro falou "deu borboleta". A mulher sentada à sua frente comia com muita disposição um prato de "strogonoff" de frango, uma montanha de arroz e outra de batatas fritas. Macabéa pensou "deve ser o aniversário ela, qualquer coisa comemorativa, pois ninguem come assim tão desavergonhadamente um monte de gordura, a não ser que seja uma data muito especial.

Uma simpatia súbita e espontânea emergiu daqueles contatos. Nada alem disso.

Macaéa então pensou: vou pintar uma série de quadros pequenos e vou chamá-los de "Objetos Gritantes", em homengaem a Clarice Lispector, e o primeiro vai ser um ovo.

Macabéa que não era nada na cidade grande, apenas pagou a conta.


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