segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Exercício de escrita (crõnica do fastio)


Segunda feira, os papéis nas mãos - contas a pagar. O moço olhou a moça que ainda dormia sobre a cama desarrumada e sentiu vontade de acordá-la e dizer na sua cara: vai trabalhar vagabunda. Mas não podia, era sua mulher. A "santa" passava o dia inteiro dormindo, a noite na internet, e vadiava no tempo vazio.

Seus corpos eram sedentos um do outro, por isso se amavam. Não podiam viver separadas nem um dia, nem um minuto.. Falavam pelo celular o tempo inteiro, dizendo besteirinhas e prestando contas do tipo estou fazendo isso agora e você, bem?
Os colegas de trabalho viviam implicando com ele e sua mania de namorar o tempo inteiro. Mas era assim, afinal, estavam apaixonados. Mas essa paixão já estava custando caro e Rodrigo sentia o dinheiro esvaziar na conta do banco, já pedia dinheiro emprestado na última semana do mês: ao pai, à mãe, aos irmãos, ao cara da padaria, no self-service pendurava a conta. A coisa estava ficando cada dia mais difícil. Ela queria ficar com o carro, então ele ia de metrô ao trabalho. Fazendo os cálculos, talvez fosse melhor mesmo deixar o carro com ela. Mas a danadinha gastava um taque de gasolina por semana e mais um monte de estacionamento não sei onde, não sei quando. Insustentável situação.

Rodrigo coçou o queijo da barba mal feita, às pressas, e decidiu que quando voltasse do trabalho iriam ter uma conversa muito séria.

E o cigarro, dele e dela, quanto custava por mês? E as maquiagens, as bolsas, tratamento de pele, botox (e ela só tinha vinte e sete anos) e sei mais lá...Tinha que resolver isso. Era urgente, não podiam mais continuar assim. Algumas resoluções drásticas foi tomando durante o trajeto do metrô, pegou um papel e anotou: shoping, casa da mae (era muito longe, lá no Meyer), cabelereiro (por que não apenas uma vez por semana?), estacionamento perto de casa- onde já se viu? E Rodrigo não viu, perdeu a estação. Agora teria que voltar na próxima. Estação da Sé (mas onde estava mesmo - Rio ou Sao Paulo?).

À noite seus corpos se tocaram e começou o incêndio.

OlgaMota

sábado, 27 de novembro de 2010

virtuos/idade


muros/
erguidos aos solavancos

trancas/

impedem
a minha voz ousada

contágios
ilegítimos/

claudicantes
lições
que aprendi
na vida

um gesto obsceno
põe final:

-"Cale-se!"

OlgaMota

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Sei lá (2)


Sei que é raro, raríssimo sentir algo parecido com amor. Esse tão vulgar homem/mulher, troca de salivas, líquidos e arrodeios na periferia de corpos em brasa. Não passa de ilusão, de nau de afogados, de superficiais antropofagias, como diz a Pagu; simples como a água (tão complexa...), não confundam. É só bom (foi pra você?). O vazio, o vazio do depois é tão mais significativo. A sede não aplaca, volta e meia, volta com mais força - vasos de barro, pois já não sabíamos?
A fome não acaba. Vai e volta, volta e meia a matamos e de novo vem de novo.
O ciclo é vicioso.

e tem mais, já que tudo que escrevo considera-se desabafo, estou cheia, realmente, estou - de fato, homens falsos, mulheres feias de por dentro, falsas guias de amarelos fatais. Não sois vocês, com certeza, as que aqui estão, mas outras, de outras plagas. Outros homens que não me comovem com seus escritos e sua sabedoria empáfia.


e mais tem ainda: sinto saudades de casa. Mas isso ninguem precisa saber. Isso é coisa só minha, muito. Um dia volto e a praia me espera, toda verde-azulada, com sua espuma branca (amarelada) e o som, a voz da água, ah, como sinto saudades. Chuá, chuá, e vai e volta, dali não passa.

e o abraço da água, esse é precioso (sempre quis morrer no mar, mas tenho medo de me afogar), com certeza me acolhendo - isso é minha casa.

Transpiro amor. De quê forma, pergunta-se (quem?).

Mas não esse amor de fato, mas o amor de propriedade indefesa, à mercê de luas.
Luares apenas vastos porque abarcam o céu, no entanto, somente meus.
Sou lua, talvez...Branca, longíncua, indefinidamente em forma de pão de queijo.
Brinco aqui, ali, depois passeio entre palavras difíceis, ininteligíveis. Vago entre elas e percebo, de fato, a minha ignorância. Mas sou amor, e isso não é ignorância, é puro apelo. Sou apelo.
Mas por que falar de mim, essa necessidade indomável...
Hoje se está em desusso, não se fala de si, dos outros, talvez, se fale um pouco,.

Por exemplo, agora o que estou escrevendo é uma carta nãoseipraquem. Mas sei que ele/ela está lendo e pensando as bobeiras de sempre das bobeiras que digo, mas não importa, daqui a pouco vou deletar, pois tenho outros tópicos e outras
comunidades secretas onde vou desabafar.

Não queria provocar esse desmantelo. Queria mais paz e tranquilidade, fazem falta. Mas não há em parte alguma. Sigo à procura. Ademais, destarte, dessas palavras que amo tão desgastadas.

Mas, voltando ao assunto, escrevo em largas letras os desabafos. Dizem alguma coisa? Não, claro que nao, protesto! Não quero dizer nada, apenas escrever, escrever, nessa modornice, angústia de uma fase árida, sem motivos, e seguir...

Podem me abandonar, o barco está afundando sem marinheiro, e o capitão? Á, o capitão se foi. Abandonou barco e pessoas naufragando. Um já se foi, outros irão logo em seguida. E la nave vá.

E ninguem vai ter coragem de dizer: pare.

o círculo é redondo e vicioso.
Não vou parar agora, porque se eu parar eu morro. É assim que funciona. Delirios no divã é para quem pode. Eu não posso - então, meu divã é a máquina em branco.

Disparo tiros de salvaguarda (isso existe?), desde que casei com o soldado. Ele lutava pela Pátria amada e me deixava a salvo. Foi o primeiro a abandonar o barco. Talve em busca da pátria perdida, o paraiso que deixou em algum canto, distraído como ele era...se a pátria não depende dele, fica melhor.

No quartel as coisas não eram como são agora. Eram bem mais fáceis. Tinhamos ração e alienávamos do mundo dentro da piscina bem cuidada. Grades e cercas de arame farpado davam uma sensação de segurança e falsa.
Mas não foi lá que descobri que Papai Noel naõ existe. Isso foi antes.

Agora, com as coisas diferentes, eu tambem sou diferente.

Enquanto vou passando à toa, pouso a mão no teclado e as palavras saem, sem querer, saindo sem querer. Repetições a quem não amo, de maneira alguma, até oeio as invasões que faz comigo. Me tira, é isso. Me tira de um espaço e me leva a outro onde existo - minha praia.

Abro o livro e leio a música, descubro que está errado. refaço. Mas estou confusa, muito confusa. A música me impede de pensar, e o livro sujo de lasanha, não me diz mais nada. A história de Clarice, a mulher. Me confunde quando toca sentimentos fundos, exacerba meus ossos triturados no último inverno.

Vi o filme documentário sobre...como é mesmo o nome do escritor português, casado com a Pilar del Rio...Sim, sim, não me lembro. Mas ele é tão famoso. Fizeram um filme que gostei. de que adianta, se esqueço tudo?

É um homem profundo e raso ao mesmo tempo. Mantido por mais tempo na máquina de viver porque escrevia.

A tentativa feroz de permanecer vivo. A posteridade (falácia).

E enquanto adorno nomes e pessoas para que me engulam de garganta abaixo,
declino da música e prefiro a mudez das minhas paredes. Elas não me dizem nada, e isso é ótimo. Preciso do silêncio delas agora mais do que nunca.

Hoje é um dia estranho, talvez esteja perdendo o juízo, assim escrevendo ao vivo?

Por favor, alguem - me pare.

Saramago.

E a fome não passa. Quem disse que o desejo morre?

Não morre, Saramago. Mas sempre tem que ter um outro braço para o náufrago se agarrar...verdade? Mesmo que não seja (verdade), prefiro acreditar porquanto talvez tenha desistido de ser uma pessoa espiritual. Isso fica para a velhice, e essa eu empurro com o corpo e valentia de guerrilha.

Por enquanto estou no barco à deriva. Eu e a minha palavra catastrófica, inútil e vazia. Perduro pendurada nelas, elas são meu braço, a bóia que me salva.

Me desculpem, daqui a pouco eu saio, vou para o mundo, descansar um pouco. Na padaria há paz..? Os ruídos de vida que me trazem o mundo vem de lá. À noite, o bar.

E às meninas eu digo sempre (não levem em conta, não sou sábia) - obrigada por existirem.

Talvez voces sejam culpadas dessa tão teiosa "sinfonia" que não me deixa parar e ficar num canto, fazendo alguns tricôs e alguns crochês, me lembrando do passado. Eu não quero o passado. Eu exijo o presente. Nem que tenha que arrancálo a pau e pedra. Preciso de um presente, e esse é a escrita que me salva.

Enquanto escrevo, saraivadas de foguetes disparam minha mente. Não entendo a metade. A outra metade é para que vocês entendam e decifrem, porque ai já não sou eu.é a outra, a que me habita e me atropela na desorganização dos armários com as gavetas abertas, tudo escancarado e a dona da casa escrevendo, desvairado, encurvada com as costas lentas, os olhos fixos nas letras que se juntam e lutando feroz com o sentido.

Claro, o presente é um sonho que acaba rápido.

O passado, talvez por ser mais sólido, apega-se ao cerébro, faz sinapses à revelia. Mas eu acho incerto, porque, na verdade, a gente cria um passado todo enfeitado: defuntos maravilhosos, infância triste, coisas que a gente inventa. Não já inventaram até o amor ("o nosso amor a gente inventa...").

Acho que escrevo para inventar um presente (ó meu Deus, tomara que ninguem tenha dito isso antes - para não me chamarem de plágio). Um plágio que inventa. É isso.

Em uma de suas poesias, o Oswaldo (Fernandes) fala alguma coisa sobre o sobrenome. Sobrenome é passado, não concorda? Então...ele fala sobre um caixão onde está escrito, ou estava o seu sobrenome. Quando li o poema não entendi nada. Agora, neste exato momento, estou entendendo o que ele quis dizer. Mas não me peça para explicar. Hoje o que mais li e me marcou foi o poema
do Allan (Smith?) - perdão, esqueço.

Desatinou essa loucura de multiplicidades em mim. Às vezes um poema detona, um escrito qualquer, uma frase...um átomo detona um universo escamoteado.

e agora, como um móvel velho, preciso arrumar algum lugar para ficar.

Tirei a poeira, sacudi os carrapichos, preguei uns pregos na sandália velha, aprumei com um pedaço de papelão dobrado o canto desancado, e fui.

Virei expiração.

OlgaMota

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

pequena história (quatro parágrafos do oitavo)


Esconde o corpo atrás do balcão e faz da porta serventia para o ladrão. Ele entra, arrombando, destruindo, e armazena seus tesouros. Muito simples: rouba tudo, diz: não presta, seleciona. No chão, os de menosvalia, na bolsa, o que tem valor. Ainda disse: não gostaria de ser uma das tuas partes na minha casa. E roubou sua alma.

O dia terminou e ela inda estava lá, sentada na frente do armário vazio. Ele tinha levado mais, muito mais do que suas roupas (para que lhe serviriam?).

E, no mais, até a maquiagem - pra que, meu Deus? Deixou-a de cara lavada.

Na máquina, a malha de molho. Na cabeça, o amor e a dor - rima pobre - foi o que restou. Não me cobrem rimas ricas. Tenho que contar apenas a história.

OlgaMota

terça-feira, 23 de novembro de 2010

quase posse (inspirada em Teresinha de CB)


foi chegando
foi chegando...
se instalou
não disse nada,

esse homem
de onde veio,
onde estava?

antes mesmo
que eu nascesse
ele já me existia
eu sabia
eu sabia...

esse homem
cuja pele
grossa e árdua
caminhou muitas estradas,
arranhou meu coração

com seus braços
e as maõs espatuladas
vasculhou minhas entranhas -

(esse homem...
onde estava?)...

escavando, cavucando
em torturas quais chinesas
me possui em seus degredos

foragido, diz poesia
e me conta seus segredos

quase posse -
me tomou e,
sorrateiro,
usurpando minhas partes
da minh´ arte se apossou

esse homem
não existe, é meu sonho
é o homem que não veio.

OlgaMota

domingo, 21 de novembro de 2010

seis parágrafos (enxerto - A mudança)


x x x


Em meio às malas que surgiram dos buracos negros da parte de cima dos armários, de onde muita coisa despencou, olhava o cinto afivelado que amarrava uma trouxa de roupas. Desamarrou-o e e todo o conteúdo despejou-se pela chão encardido. Roupas, nada mais. Seriam as que ocupariam as malas? Não sabia, estava tentando uma racionalidade que não possuía de maneira alguma. O que levar, o que deixar? Onde deixar, para quem doar?

Se pudesse só o corpo levaria. Se pudesse desapegaria o corpo de todas as necessidades. Como seria: um Bispo do Rosário, talvez...Aquele que queria desfazer-se da matéria para pode subir ao céu ao encontro de Deus, Madre Teresa de Calcutá, Gandhi, esses sábios que não precisavam de roupas, bolsas, sapatos, bijuterias, maquiagem, porta-isso, porta-aquilo, cartão de crédito... Putz...! Sabiam que se tivessem menos matéria a carregar chegariam mais ligeiro. Um ritual de passagem.

Ela, não. O seu caso era mais simples nesse aspecto e complicado de outro - não tinha intenções de subir aos céus e encontrar com Deus, se pudesse promoveria o encontro por aqui mesmo, ela queria apenas e tão somente carregar menos malas e bolsas de mão. As coisas brotavam das gavetas, dos esconderijos, das caixas abertas uma a uma. Uma espécie de afição apertou o coração cansado da noite cheia de pesadelos (sonhou que carregava um caixão leve debaixo do braço à procura de alguem que atestasse o morto, para que se pudesse enterrá-lo. Supunha que ali só haveria ossos, tal a leveza do caixão, e que tambem já fazia algum tempo estava sendo carregado - o resto do sonho só contou à sua mãe, para que sentisse um pouco de pena dela, mas posso adiantar uma pequena parte: o caixao abriu-se).Tudo a ver com a viagem, a mudança. Mudança é morte, e sempre morte, repetiu a vida inteira. Essa sensação sempre a acompanhou nas suas muitas andanças que despertaram a alma cigana que em si habitava, todavia, a sensaçao de aflição diante das coisas - literais, sempre atormentava.

Não deixar nada para trás? Impossível. A "desmaterialização" ainda não lhe era acessível, teria que aperfeiçoar o espírito. As amarras como contas, contratos, consórcios, linha fixa...davam uma impressão de mulher de negócios, quando o seu negócio era somente viver. Onde levaria o violão? Ah, com certeza nas costas (lembrou o caixão do sonho).

Abriu umas outras caixas e descobriu segredos. Cartas, esssas coisas. Rasgou todas em pedaços largos, enfiou num saco plástico e deu um nó bem forte. Lixo. Fotos. Lixo. Cansada de digladiar-se com as coisas, gostaria de tocar fogo em tudo e tentar receber o prêmio do seguro. Iam descobrir, era péssima nos seus planos pérfidos, até o dia de hoje nem umzinho tinha dado certo.

Pegou o casaquinho preto, largou tudo do jeito que estava e saiu para comprar umas cervejas. Melhor beber para esquecer.

OlgaMota

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Malamada


Mala Amada

Você já se sentiu como uma mala?

Uma mala velha, desengonçada, maltratada, sem ziper, sem alças, esborrotando de roupas sujas ou usadas, uma mala dessas antigas, sem rodinhas, escura, triste, arrastada pelas escadas, sendo enfiada em buracos escuros, de qualquer jeito, sem o menor cuidado: mala velha, desgraçada!

Arrastada no metrô, enfiada na traseira de um carro velho reformado, jà?

Já se sentiu ultrapassada, desleixada, mal-amada, rotunda e furibunda, despejada, e afinal jogada debaixo da cama...para ser usada numa próxima viagem?

E se não houver a viagem, para que serve a mala? - Oras, para guardar sapatos velhos, comprovantes de pagamentos do século passado, roupas de inverno no verão, ou, no verão, da moda ultrapassada...

Às vezes lhe passam um paninho, ou doam, emprestam, e nem sequer pedem seu resgate?

Já lhe puseram os pés em cima, como se fosse capacho, e às vezes nem lhe tiram as baratas mortas que se acumularam?

Já sacolejou de ônibus ou no trem da Central, ladeira abaixo, ladeira acima, sem o mínimo cuidado?

Que fazer com a velha mala, que não mais se encaixa debaixo da cama - as camas hoje tão baixas...qualquer um sobe nela, mas...a mala – não, ela ocupa muito espaço.

Você já implorou: me põe dentro da grande, dessa de rodinhas, toda ajeitadinha, de grife, marca renomada?

Embora mereça carinho, a mala não serve para nada, pois estão todos ocupados com suas próprias viagens.

Vai ter festa: leva a mala! “Ah, não sei, a festa é só pra casais”...Ih, ela pode ir ao batizado? “Não, não vai, a mala não entre em igreja!”

O churrasco, sim, pode levar a mala. Aproveita manda ela levar as cervejas, a carne, o carvão e a salada de batata...pois, afinal, para que serve a mala?

cinco parágrafos


Subiu a rampa da garagem do prédio numa velocidade que lhe rendeu uma multa e foi motivo de pauta da próxima reunião de condomínio. O tremor era visível nas pernas. Não se dava conta, mas os vizinhos que estavam no elevador olharam de um jeito estranho ("estava bêbada", comentaram depois). Era agora um espectro caminhando dentro da casa vazia, tocando as coisas sem vida: o sofá de dois lugares, as paredes frias, a cozinha...

Sentou-se no banquinho de madeira, até que sentiu o corpo aquietar-se daquela espécie de terror físico. Era a realidade inscrustrada na casa fria. Depois de um longo tempo olhando através da pequena janela, vendo apenas o grande muro que a separava do sol, levantou o corpo pesado, cheio de dor, abriu a geladeira e
procurou entre os restos de comida, algumas frutas, embalagens amassadas de alumínio, uma lata de cerveja. Abiu-a e tomou de um só gole. Sentiu alívio.

Nas paredes, os quadros que ele pintava e outros já embalados para levar à galeria. A cama, os lençóis alisados, perfumados, bem arrumados (ele gostava assim), convidavam...mas ela resistiu. Foi ao banheiro e deixou que a água quente escorresse desde a cabeça até os pés e nesse torpor ficou muito tempo. A água espumada lavou as lágrimas e o cheiro das flores e de defunto. O roupão de flanela, ali, à mão, era dele. Vestiu-o e sentiu o cheiro. NUma estranha repulsa jogou o roupão no chão molhado, e procurou outro no armário organizado meticulosamente (era assim que ele gostava).

Sentia a nova realidade, mas ainda um pouco sem noção. Talvez fosse mais do que aquilo, pressentia.

Quando deitou na cama gelada, novos tremores a atacaram e as lágrimas desceram em torrentes impedindo pensamentos . Finalmente, exausta, dormiu.

OlgaMota

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

quatro parágrafos


Conseguiu encontrar as chave do carro dentro da bolsa, toda confusa em suas mediocridades de maquiagens, papeis e outras chaves.

As flores regavam seu colo. Uma ardência estranha invadiu os seios túrgidos, numa espécie de agonia relembrou o calor das mãos dele entre seus seios. Não, ele não morreria. Quem mais poderia atingir seus âmagos com tanta frequência e anseios? Ninguem.

Acelerou o carro. Alta velocidade: cem quilômetros por hora - não era suficiente. Mais...mais...cento e vinte...cento e quarenta, e, de repente, no calor da velocidade, já não pensava.

Estava apenas entre eles o calor das suas mãos entre os seios, e a verdade: ele já não estava.

OlgaMota

Três parágrafos

"A vida não é feita só de alegrias" - com um suspiro, depositou cândidamente as flores sobre o túmulo e afastou-se, ainda com os olhos parados, de quem olha o vazio e nao entende nada. Os olhos turvos e cegados pela luz forte do sol, perdeu-se entre os túmulos, todos ao nível do chão, pequenas lápides. Ali um poderia ser perder facilmente, pois pareciam todos iguais. Lembrou daquele velho e gigante cemiterio São João Batista, onde os túmulos eram obras de arquitetura encimadas por obras de arte esculpidas, e os nomes postos em mármore; grandes e pomposos eram aqueles túmulos. Que diferença faz, pensou ela.

Mas gostou de caminhar sobre os mortos. Como na capela de Winchester (ela não estava certa de que seria essa Winchester, mas lembrava de uma música) porem, ali não havia mortos famosos, reis e rainhas. Homens e mulheres comuns, não bem uma vala comum, túmulos simplesmente dignos. Ao solo o que lhe pertence. "Do pó vieste, ao pó voltarás". Continou caminhando, dando voltas enquanto pensava no sentido da vida. Isso é muito comum quando se caminha sobre mortos; é diferente de andar entre mortos, que é o que fazemos diariamente. Mortos enterram mortos, mortos vivem entre mortos.

A sensação tomou conta dela e não viu que estava anoitecendo - já devia estar lá há horas. Os coveiros terminaram seu serviço, amassavam agora a terra sobre o pequeno túmulo, numa espécie de arte final, quando depararam novamente com a mulher de corpo magro, seco, vestido de calça jeans e casaquinho preto. Ela simplesmente havia dado voltas em torno do túmulo, ou, então, na melhor das hipóteses, tinha andado em círculos. Voltara, pois, para o mesmo lugar, o mesmo túmulo, e os olhos agora procuravam a imagem do homem que vira enterrar. Não, agora mais nada. O homem fora completamente vestido de cal e pó. Ali estava nada. Jã não era, já não era...Estranho ato, pegou as flores que havia depositado e que já estavam semienterradas tambem arrancou-as violentamente da terra,....e, num choro convulsivo, deixou derramar-se afinal aquele sentimento terrível que apertava seu coração, e saiu em desabalada corrida em direção à saída. "Onde fica?" perguntou aflita, novamente perdida entre os túmulos.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

ser ela


te() falo do que serve.
do que não serve...
despojo!

a via láctea faz etérea
essa mulher tão bela,
nem tão triste, nem tão ela....

serve-se do aço e escalda
as saias frias.

e veste-se (e despe-se)
de açoites, dos amores
para enganar o tempo,

vento vão que sopra,
assobia,
assopra e descabela
essa mulher tão (ela!)

depois...ah, depois...
- essa mulher tão bela...
assenta-se no caldeirão,
fornalha dos seus vãos aflitos
escalda a carne aflita...
gela!

grita-se,
esfacela
dilacera
expurga,
esquenta-se -
esfria...

debate-se entre
versos e quimeras

sombra-agonia
de ser ela.

dois parágrafos

DOIS PARÁGRAFOS



Entre um e outro, a diferença enorme: um baixo, calado - o outro, quase um monstro - eu o sentia duro, empertigado, a fala forte, palavras, dono da sala, da mesa, da festa. Eram um quando juntos. Quando separados, contava-se mais de três. O terceto, trólogo de uma só voz. Não saberia explicar como aquele homem entrou nas minhas veias e calcinou de um só tranco todas as velhas certezas e destruiu a esperança de não mais amar. Acendeu-se a chama do fósforo "como água para chocolate".

O velho virou moço num instante, e o ligeiro encanto que lhe sobrava em poucos dentes, abriu-se num sorriso. Era o ponto. O que faltava - era o fim da vida . Enterrei- -o solene e austero no seu paletó (único de uma vida), sem adjetivos, lápides, corcundas carregando pás, sem cantos - embora eu desejasse aquela avemaria...!Caída a última pá de terra e cal sobre seu rosto meio sorridente, engalanado como na festa do dia do casamento, foi-se o velho. Era meu pai, não sei..um tio, um parente, um desconhecido? Joguei-lhe a flor murcha sobre o túmulo. Quem fosse.

OlgaMota

a verdadeira macabéa - béa, (não BÉIA)


Nós já fomos um dia.

Apressa-te, a mula está ancorada lá fora.

A besta que te servia de encanto diluí-se num copo dágua.

Apenas vertentes de rios secos, parâmetros diluídos entre dentes, entres entes que não foram, que não querem...

Macabéa e macabéias tristes, sei que espalham, todavia, seus vermes, ventres, dementes incompetentemente saídos de asilos.

Não são mais aquelas. Não se fazem como antigamente.

Hoje, nobres artesãs das palavras, desfrutam gostos exóticos, estranhos, não carregam nenhum fardo, nada que atrapalhe as costas vergadas em noites passadas em universidades.

Não as fazem mais tristes, apenas imitam...plágios, eternos.
Nada impede que as sinta em todas partes, em todas as poesias.

Eternas Macabéas.

OlgaMota.

domingo, 14 de novembro de 2010

Jovem, Bela, Inteligente


Não sou,
Mas o meu feitio
Talvez restabeleça
Algum olhar profundo
E resista
Algum lampejo
Que, a olho nu,
Você talvez não veja

Enquanto eu fora um mistério,
Tudo bem
Pero ya no soy...
Que mais tu queres,
Anjo Meu?

Que volte o tempo?
Naõ carece.
Que meus olhos brilhem como
os teus?

Um dia a podridão
Comerá teus olhos
Teus belos ossos...
Como comerá os meus

OlgaMota

crônica triste do domingo/adeus a Macabéa


Ela ouviu uma voz bem atrás, bem nas costas: "Maca!" Voltou-se rapidamente e seus olhos ainda não reconheceram de imediato a voz, antes de pararem no olhar: "Você"? Ela espantou-se. Sim, era eu.
Abraçamo-nos infinitamente, enquanto os sorrisos volteavam ao redor, dentro do metrô. Era eu e era Macabéa.

Depois de quase setecentos abraços e beijinhos no rosto, finalmente sentamos nos bancos duros do trem e começamos a falar atabalhoadamente sobre o futuro, o passado, o presente. Há muito tempo não nos víamos. Desde o ginásio. Somos primas, mas ela casou-se com um banqueiro e mundos diferentes afastaram-nos. Nunca mais nos tínhamos encontrado. Aquele encontro poderia vir a ser a vida inteira que não tinha sido: o principio do retorno de uma amizade que era tudo na minha vida, que foi até mesmo durante algum tempo de casadas.

Estranhei ela estar no metrô, ela riu e disse que as coisas tinham mudado. Por sua roupa meio puída pude perceber que sim, mesmo. Estávamos mais velhas e desgastadas pelos nossos sonhos de filhos e destinos de mães e donas-de-casa. Onde estão?... eu queria saber. Eram tantos, se me lembro bem. Gostaríamos de ter tido mais tempo para nós, não é mesmo, Maca? Mas não foi possível.

Ela formou-se em Farmácia, eu, nao me formei em nada, sou artista. Meu desejo sempre foi escrever, ela sabia.

- Eu sei - ela disse, eu sei. Isso me emocionou porque somente a ela mostrei meus escritos bobos de adolescente. Trocávamos poesias e ríamos muito, mas tambem levávamos a sérios as conversas que julgávamos ser profundas, regadas a Herman Hesse, Kafka e sua barata, Clarice (?) e Dostoiévsky.

Planos desfeitos, fobias sob controle, filhos no mundo, eu e Maca repartimos mil segredos entre quatro estações. Trocamos telefones, endereços, lembranças para fulanos, para ciclanos, para beltranos. Macabéa desceu do trem na sua estação e ficou parada na plataforma com um sorriso triste, enquanto eu, vazia de mim, de rosto colado ao vidro, deixei escorrer lágrimas antecipadas.
Sabia que teria que dar adeus a Macabéa. E o nariz escorrendo colado ao vidro trouxe-me de volta ao encantado mundo da infância.

Good bye, Maca Darling, assoei o nariz na manga do casaquinho preto, Sei que vou te amar por toda minha vida, eu vou te amar, mas não sei, todavia, quando vou ter coragem para dizer o adeus.

Tenho certeza de que não foi um sonho.. Eu vi minha prima nesse dia, como no outro dia eu vi o carteiro, já velhinho, que trazia as cartas do meu namorado, era ele, juro. Eu vi todos passando brancos e certeiros diante dos meus olhos marejados, entre as filas de bancos do trem acostumado a tantas esquisitices. Deixei voar minhas saudades, os meus amigos e parentes que morreram, todos eles, o meu filho... com certeza, fizeram mil viagens comigo, nas minhas estações.

,,,,

acho que ja postei esse. vou ver de novo depois

Alzhmeier? rs...precisei guardar.

alzhmeier.. -preciso urgentemente aprender a escrever esse nome....por que esse alemão pode entrar porta adentro a qq hora e aí teremos que conviver um conhecendo o outro, embora um sem lembranças. Quem me garante que ele resiste aos meus encantos?
Talvez o enfeitiçe, quem sabe? Se o Alzehmeir topar a parada, fica só pra mim e daí livro toda uma geração do sofrimento. A heroína.

um parágrafo


Sentada na beira do túmulo, a moça pensava. Não, não estava chorando, nem nada. Apenas...a moça pensava. Na morte, na vida, na desesperança. E amassava entre as mãos o caule de uma flor. Já anoitecia, e os coveiros tinham que terminar seu trabalho e aguardavam, com a pá e a enxada, esperavam que a moça levantasse. Tinham que terminar o trabalho. A cova ainda rasa, e a moça lá sentada. Se demorasse muito, ó flor, poderia ser enterrada junto. Nada tão longe do que ela desejava.

OlgaMota

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

sou das que peidam pra fora.

Ainda há e muito, homens que acham que uma mulher sozinha, em um bar, ou restaurante, sozinha, está "caçando".

Vim de um lugar assim e parei noutro lugar "assado". É tudo igual.

Não sabem que uma mulher pode odiar a novela das oito, as séries americanas que passam na NET, que detesta ficar horas a fio falando ao telefone um monte de abobrinhas, que gosta de tomar cerveja e prefere não beber em casa, porque isso aproxima mais do alcoolismo....


que existem mulheres que gostam de sentir calor humano, sem necessariamente levá-lo para casa, sentir o cheiro de café de padaria, que gostam de observar pessoas, que gostam de depois de um lanche, uma cerveja, ir pra casa, tomar um belo banho, vestir uma lingerie gostosa e dormir sozinha....!"?

que gostam de escrever suas impressões sobre as besteirinhas da vida sem que nada, nada mesmo , as interrompam,. nem um "posso sentar aqui com você".?


que há vida depois de "certaidade". olha, vocês que pensam assim, estão tão enganadinhos, coitadinhos...

tem um artigo aqui que diz que certas madames "peidam " pra dentro. Por que tantos abusos ainda se cometem contra a mulher, e agora, contra a "coroa", "baranga", seja o que for que os machões apelidaram a mulher mais velha, a mulher, velha, a mulher idosa... expliquem, já que Freud e outros explicaram e não deu em nada.

Mas isso não é censura: escrevam, escrevam, o que quiserem....e me deem o direito tambem...sem nominar.

OlgaMota





Em mim


Alguns pedaços se partiram.
Dói algo que me desconhecia.

Posso brincar de partidas
Indo e vindo instantes,
Entanto não me deixarei ser eu...
Pois fiz da minha face mil espelhos,
Não me deveria, agora nem me sei.

Quis morar estrelas,
Habitar lugares santos
Mas nas dores evocadas,
Nos entantos dos luares que vivi
Estrelas murcham e caem,
Descobrem a minha carne
Nua, crua, desossada,
Todavia pura de desejo.

Céus e nuvens cobrem
Essa carne viva
Antes tão nobre
Agora um pano desbotado
Sem disfarce,
Sem estrelas, no céu pardo
De manhã, assim tão bela e triste.

"...lá no Reino de Afrodite"


Os velhos tambem beijam
(Os brutos tambem amam).

Os velhos tambem amam
Pagam mico, fazem drama.

Os velhos fazem dramas.
São aflitos, sentem pressa

São aflitos...sentem pressa...

Na alma se levanta o grito:
Estarei, amanhã, vivo...?


..........

V II

Os velhos tambem beijam
(Os brutos tambem amam).

Os velhos tambem amam
Pagam mico, fazem drama.

Os velhos fazem dramas.
São aflitos, sentem pressa

São aflitos...sentem pressa...

Na alma se levanta o grito:
Sepultuuuuuuuuuuura!

CARTA AO CREITO

(Pedido de Casamento da Macabéa)

Sabes cerzir,
Cozer, cozinhar,
Pregar botões
Lavar, passar?
Usar Cândida -
A Melhor Amiga da Mulher,
E os temperos...
Sabes colocar?
Sabes acordar
Bem cedo
Preparar marmita
Café, chá,
Fazer tapeçaria
Bordar, transar?
Gostas de Futebol
Coritians ou São Paulo?
Mengão - ah não!
Muitos conceitos hás
Ter que mudar
(e o controle da TV
é meu - fique sabendo!
- lado direito da cama, e
a melhor posição na mesa)
Ganhas algum dinheiro,
Bem? Sim, porque eu
Posso perder o emprego
Gostas de ler
Que tipo de leitura,
Escreves?
.....


Gosto de homem escritor
Não se importa
Que eu use calcicha furada
Nem de umas arrancadas
Violentas no meu jaguar?
Sabes por acaso
O que é depressão,
Bipolar, tpm,
Esquizofrenia
E menopausa,
Já ouviu falar?
O bife, como o fazes?
Ao ponto,
Mal ou bem passado?
Sabes lavar louças
Torcer, secar, varrer,
Dobrar, guardar
Esticar a cama,
Esterilizar?...
Sabes,
Dobrar gaurdanapos
.....

Usar aspirador de pó
Sussurrar poesias
Tipo:
- Tás afim de transar?
Elogios, elogios, elogios
Meu ego é meio problemático
Frágil, precisa de afagos
Sufrágios, senão morre...
Maionese, margarina,
Sabes onde colocar?
Arroz de carreteiro
Omelete, macarraõ
Rabada, arroz e feijoada....
Sabes elaborar?
Insisto nos detalhes
Pois são muito importantes:
Permite-me envelhecer
Com orgulho e elegância?
........

E não sejas muito exigente|:
Posso ser Alice, Macabéa,
Augusta, Antonia, Luciana,
Cintia, Karla, Clarice e
Julieta,
Todas juntas ou uma 
A cada seu tempo?

vejo meu menino em todas partes


eu vi meu filho num joelho, numa mão, na nuca do passageiro, na roupa do menino de rua, no balcão de poesias, num carrinho de rolemão. eu vi meu menino e chorei num grito, apenas o que não está escrito, somente o que tem lá dentro, bem fundo, no coração. vejo meninos em todas partes, meninos que choram, meninos que passam e tem o olhar alheio, o jeitinho aflito do meu meninão. eu vi o dia em que a terra engoliu e vi o buraco grnade, negro e rasgo que engoliu meu menino. que é camile diante disso, que é claudel? que é ser artista, ser nada, ser pinéu e tomar comprimidos? nada. nada diante. adiante de mim, só a morte. me dói.

Olga mota

As memórias da menina-coisa


Ela sempre soube que tinha nascido para escrever. Pensava que a vida ensinaria, alem de um regular domínio da Lingua. Mas a fonte, o jorro de onde deveriam sair as idéias, as palavras se concatenando, dançando a lúdica, ou nem tanto - dança é que era o jogo. As idéias estavam soltas no ar, em outros escritos, nos filmes, nas músicas que escutava. E ela sonhava coisa pueril: vou ser poeta. Mas não deu. Poeta é muito difícil (ser), mas a alma, ah essa!, parecia ser poeta. Pois não tinha o ingrediente sofrimento? Aquela alma dela não descansava. Andava aflita pelas partes que lhe cabiam no espaço mundo, mas ela mesma, infeliz não cabia em lugar nenhum.
Remotos e outros nem tanto, os lugares passaram por sua vida andarilha, mas não teve nada de seu. Tudo lhe escapava pelas mãos. Muitas vezes era como se não existisse.
Um dia, arrumou a mala e partiu. Nunca mais voltou, Ficou por aí, até que decidiu escrever suas memórias. "Memórias, ora direis"! - que memórias, se a moça nem tinha vivido? De inventar personagens e viver a vida deles. Sim, por que não? Ninguem precisaria saber daquela cena real, daquele dia em que o tio colocou a mão por entre suas pernas, o outro tio, em outro lugar (não mais nas pernas), o pai na rede com uma vagabunda, o médico, o sacerdote, ...bom, ninguem podia saber Isso era assunto reservado, proibido para menores. Naquele tempo (?) os adultos podiam fazer o que quisessem com as crianças. Menina não diz essas coisas, menina não se mete em conversa de gente grande, e por aí vai. O segredo é o medo. Restrita ao domínio do medo, ela, meio doidinha, ninguem iria acreditar. Mais uma fantasia da menina que toca violão, escreve versinhos, vive a sonhar, voando entre nuvens fantásticas e nadando no mar que criara para sua alma dolorida, subterfúgios que o tempo roeu. Tentava ser feliz, a despeito de tudo. A felicidade era seu rumo, mas, como um barco sem prumo, naufragou. Não sabia que isso um dia iria doer. Pensou ter esquecido, pensou que era assim mesmo, que assim era ser mulher.

E deixou que o tempo levasse as lembranças como leva essas folhas secas que voam por ai, ao sabor de outonos e primaveras mal curadas. 
Num dia era inverno, noutro, verão; e escrevia, escrevia, na busca da sua verdade. Nada então, a mão que detonava, impediria de voar. Sim, era como se, não só os tios, ou o pai - a tivessem transformado num objeto, ela mesma estava-se obrigando, singelamente à fatalidade de aceitar o fato como certo: ela era uma coisa, não era um pessoa.
ELA era a culpada: "Sua filha é linda, é tão perfeita!". E as maõs a alisavam e ela era tão bonita, tão perfeita.

Escreveu então, suas memórias. Ainda vive até o dia de hoje, mas sempre chora quando vê uma criança ser violentada em palavras, pensamentos, ou ações.

.......


Quando a menina-coisa virou mulher-objeto começou a escrever uns versinhos, umas coisinhas que postava numa comunidade onde havia gente muito interessante, gente nada interessante, gente arrogante, e gente com varias personalidades (o que na comu chamam "fake"). Certamente ela estava encaixada numa dessas categorias ou senão em todas.

A editora devolveu-lhe os papéis digitados em fonte Roman 12, e disse-lhe rispidamente: - De quinta categoria! Assim mesmo, sem dó nem piedade.

A mulher - vamos dar um nome à criatura: Macabéa Alice, não se importou muito. Ela sempre soube disso. Os professores diziam: menina, continue escrevendo, ela rasgava. Os cadernos cheios de poeminhas rimados que ela aprendia a fazer na escola com aquela professora de Português, Tania, rasgava todos, às vezes até queimava. Daquele tempo, já tinha instintos autodestrutivos. Coisas de menina-coisa.

"O público (alvo)*sentido amplo, prefere poemas eróticos-sensuais, com toques pornográficos, alguns palavrões ou insinuações explícitas (existe?). Querem cenas de cama, mulheres ardentes e violêntas, poedrosas, Nada dessas meninas meiguinhas que vem do interior, etc, etc, isso é lixo. Realmente, seu estilo é meio ruinzinho: Um dia ela é escritora na variedade poesia, outro dia escreve contos (que são chamados nanocontos, o que até hoje não entende - deve ser questão de espaço na comunidade), e outro dia qualquer ela tem uma espécie de diarréia verborrágica, despeja um conjunto de palavras que desencontradas formam uma visão até, por que não dizê-lo, ó céus - profunda da forma como ela se vê. Centrada em si mesma, nada de poesia social, feminista. Nada. A menina-coisa só escreve para não morrer mais cedo do que o previsto nas contas do Diabo.

invasão particular


estranhos varrem a minha rua como se fosse deles,
particular!, e passam...indiferentes...
minha rua, eu...!

catam o meu lixo, recolhem a minha sujeira,
a minha, tão sujeita aos fracos desatinos...

estranhos entram, saem,
invadem,
sempre arrogantemente
meu portão, da minha casa.

indiferem ao que é meu,
sagrado...
rolam suas pernas roucas
sem cabelos, pelos
que os possa
adivinhar.

são loucos, ou sou eu
que, na forma delirante
de ser algo particular,
sem preço, sem domínio,
esparramada na rua
que não me pertence...

peço apenas que me deixem:
não me toquem a rua, a lua, o lixo, a casa,
meu portão, minha latrina...

Olga mota

um texto esquecido no presente


Hoje vou escrever um texto. Vou escrever um texto. Vou escrever um texto, reptidamente soou nos meus ouvidos o dia inteiro.
Agora que estou diante do teclado, o texto desapareceu. Não sei que texto era, do que se tratava.
Olga parou e ficou olhando a tela em branco. Mas, que texto seria esse? Afinal, já deveria existir antes, na cabeça...ou teria que inventar agora, de repente, um texto?
Mas...sobre o que? O que faria sentido agora na hora do jantar - talvez falar sobre comida ou qualquer coisa que afete um mortal que não tenho jantado ainda.
Receitas, sim,pensou no Mr Klotz e seu livro de receitas. Mas agora não tem mais o que pensar: o texto sai ou não sai.
Está saindo, como estão vendo, mas não é bem um texto. É um texto sobre não ter texto. Assim: não tenho nada de texto hoje. Vazio. Li algumas coisas mas não fixarem ponto na mente. Sinto o vazio das palavras mais do que nunca. Como as pessoas escrevem - assim, pronto, de repente, vem um texto, vem um verso pronto, anotam ou sai de sopetão?
Eu queria, confesso, como sempre sai: "de prima", como dizem. Está saindo, saindo, devagar.
Mas isso não é um texto. É uma falta de texto. Aqui não disse nada até agora, e pressinto apavorada que não vai mesmo sair nada dessa encéfala. Melhor desistir e deixar o texto para amanhã. Talvez eu sonhe um texto, ou talvez ele me atropele no meio da rua, ou no metrô. Só não quero escrever sobre o passado, não quero. Quero um texto do presente.

Olga mota

(já vi esse filme) Francisca macabéa da silva

perdeu o dedo indicador da mão direita quando tinha treze anos. Era uma torneira mecânica, e o acidente aconteceu enquanto manipulava uma das máquinas corta-dedos que o patrão azeitava religiosamente às quartas-feiras.
Mas ela não esmoreceu, nao: "teime, Macabéa, teime!", a voz da doce mãezinha ecoava sempre aos seus ouvidos, impulsionando-a a um futuro de sucesso e regalias. Dependia totalmente desses impulsionamentos. Davam-lhe força e às vezes inspiraçao poética. Mas o destino de Francisca Macabéa estava escrito nas estrelas. Teria a sua Hora.

Aprendeu a tocar guitarra e compôs, numa ocasião não muito propícia, dependendo do lado de quem via, um hino. Acabou sendo condenada pela kgb como instigadora das massas, revolucionária, O refrão, supunha-se, nessa época de duras cervizes, ofendia Sua Majestade Imperial, o General.

Criou o Movimento dos Sem Dedos (MSD). Foi presa de forma inesperada, só deu tempo de apanhar o casaquinho preto. Torturada, massacrada, escangalhada, estuprada, culpada, xingada, forçada, quebrada em mil, centrifugada, eletrocutada, escapou com vida graças às origens fortemente enraizadas do nordeste brasileiro. Mulher de fibra de algodão e cana de açucar.


Os adeptos incansáveis do MSD postaram-se durante anos a fio e pavio na porta do presídio berrando histéricamente o refrão amado. Macabéa, do alto da masmorra comandava as massas rebeldes e insuflava as massas flácidas da galera da academia.
Gays desempregados, domésticas, trabalhadores, torneiras, todo o povo, vulgarmente apelidado de povão com alguns aderidos intelectuais "de esquerda" adorava Macabéa.

As palavras de ordem eram gritadas nos estádios cedidos sem infraestrutura (microfones, altofalantes, banheiros), e funcionavam como telefone sem fio, aquela brincadeira que toda criança gosta. Como era de supor, a mensagem saia inúmeras vezes deturpada no fim da fila. Mas era ela. "Macabéa, Éa, Éa, Éa!"
Entrementes, tudo era insulto e horror.

Nas horas meditabundas da prisão, Francisca bolou um plano diabólico: seria Presidente do Brasil. Estava decidida a salvar a pátria mãe gentil das garras daqueles brutos que massacravam o povo, idolatrando, salve, salve, os uniformes galosos.
Teimou, teimou, até que conseguiu. A faixa estava no seu peito forte,varonil, lábaro que ostenta estrelada até o dia de hoje, graciosamente posto sobre o casaquinho novo.



Nos ínterins,antes da vitória final, fazia excursões pelo país, caminhando e cantando, seguindo a canção da glória e da fama, e do poder. Um ídolo, uma paixão nacional.

A partir daí foi uma sucessão infindável de vitórias. Ganhou tantas medalhas que não cabia mais na porta do armário embutido. Chorava a cada vez que seu país ganhava uma Olimpíada, Tourada na Espanha, Baile de Formatura, os Dez Mais. Era tudo pura emoção. Esperar não é saber, filosofava Macabéa.

Sensível, fazia tratamentos de pele e cuidava das madeixas que estavam enbranquecendo. Virou Pop Star, tinha avião particular em consignação e adorava capirinha. Seus olhos gulosos lambiam o destino vorazmente.

Para compensar a fome sofrida no passado de miséria e pobreza, naqueles sarcófagos ambulantes caminhões farofeiros paus-de-arara, Macabéa agora só comia churrasco, e tomava todas as caipirinhas. Acumulou dentro do seu enorme ser físico alguns bois e vacas, já armazenando para as improváveis vacas magras que poderiam vir a ser. Nunca se sabe: ainda tinha medo e chorava à noite pensando na sorte de quem não tinha, como ela, galgado os degraus da fama.

Conheceu os poderosos e zombou deles, apontando-os com o dedo inexistente.
Nunca se soube de aventuras extraconjugais, coisas assim depauperantes. Macabéa era moralmente íntegra nessas questões de sexo.

Falava sobre qualquer coisa com muita propriedade, sabedoria. Afinal, misturada ao povo aprendera muito. Falava a lingua deles, entredentes. Não lhe sobrava modéstia.
Ainda toca sua guitarra nas horas vagas para uma plátéia seleta. Verdade, o refrão mudou: "That Is The Guy, Ai, Ai, Ai."

Ah, Macabéa...