sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

memórias

Sei que pode parecer estranho, mas não tenho passado.
Fui achada no meio do nada, e, ainda, dizem que apareci.
Talvez uma estrela cadente, a calda de chocolate quente;
(eu ia dizer calda do cometa, mas isso está muito batido).
Nao importa, eu não nasci. Apareci no meio do mato e na
nuvem que o céu importava de vez em quando e molhava
a terra ardente, de secura ímpar, de trabalho duro, enxada.

Apareci onde não tem água, pote e sede que matava. Lembro
apenas da cacimba, tepidez forjada na madre causticante.
Não me lembro de mais nada. Sim, não posso ser injusta...
Lembro meu paim num palanque, bruto e seco como outro
nordestino. Dizia coisas do tipo "não sou santo mas prometo
trazer chuva, muita chuva...coisas assim impossíveis. Não me
lembro de berço, bonecas ou brinquedinhos. Era dura minha
infância, no sentido de que não tinha um sapato, não, naõ me
lembro.

Sei que pode parecer bizarro, mas o trem, sim, eu me lembro
tinha um trem que fazia a volta no meio da casa: não, isso não
pode, não sou santa - não posso trazer o trem para dentro de
casa. O sofá era um banco de jeep, de época passada, guerra,
talvez - vou saber? Não me lembro de nada. Ah, não querendo
ser injusta, novamente: me lembro de redes e penicos e coisas
que os valham. Que raro! Lembrar coisas que sabia que não 
lembrava.

Aparição. Sempre saía de "nossa" senhora na procissão. Sim, eu
me lembro. Quê mais? Bom, depois que apareci, eu não chorava,
Nunca chorei. Mas, como? Se bem há pouco estava a derramar
as lágrimas que matavam a minha sede. Sede. Não me lembrava
essas mágoas. Não sabia que a sede estava dentro de mim - a
sede incrustrada. Cresci, vivi e morro na sede de um sertão bravo,
esquecida num canto da sala. Mas, insisto, não querendo ser injusta,
renegando o peito que me amamentava: Não tenho passado.




olga Mota

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