domingo, 7 de novembro de 2010

Voltando ao Querido Diario, Cena II

CENA II.


Cenário: a tela inacabada (afinal, cinco minutos é pouco para uma obra nada genial),
e um cenarista pedalando uma bike (de verdade) sem sair do lugar (truque). Cachorros latindo. Pelo jeito é domingo.

Narrador II, displicentemente falando com a platéia.


Cecília saiu. Estava exausta de tanto ensaio, pintura, decoreba, discussões infindáveis. Ufa! Foi tomar cerveja num bar que tem ali perto. Volta já porque sabe que isso aqui é um monólogo. Ainda não conseguiu gravar a última fala. Diz ela que é muito difícil. Estão vendo alí, os cenaristas estão tranquilos, sentados no chão do palco. Afinal de contas eles ganham por hora.
- Pode fumar aqui?
A platéia em coro:
- Não!
Ah, tá bom.


....




Narrador III, ou melhor Narradora (a gasguita).

Senta nos degraus opostos e começa a falar. Antes que alguem perceba, vou logo avisando. A moça é feminista, é escritora premiada, é alguma coisa muito importante no negócio lá dos Direitos das Mulheres, é negra do cabelo encarapinhado, é valente da gota, nordestina, e de uma religiosidade meio confusa, caraterística brasileira. Todos esses atributos, cargos e ocupações, desviam-na do foco que é ser atriz. Por isso foi rebaixada a narradora. Talvez tambem mais pelo fato horrorroso da voz.

(no ínterim (ai, voltei ao lugar comum de onde nunca sai), o Narrador I está tendo uns ataques e expulsa os cenaristas do palco, manda apagar a luz.

Dificil é a doutora ser intimista.

Vamos lá:

Não sei por que essa gente implica tanto com a Cecília. Tem que ver a história dela...Vejam bem (eu particularmente detesto isso de "veja bem", mas muita gente usa - é comum), Cecília foi quase violentada pelo tio materno, surpreendeu seu pai na rede com a empregada e ainda recebeu o abominável convite de se juntar para um menage, um dos primos tentou boliná-la no meio da noite escura e veloz, entre muitas histórias de violência cotidiana, aulas de piano, bossa nova e violão. Fazia versos desde pequena, mas nunca alguem os leu, conheceu Ferreira Gullar numa festa, mas não sabia quem era ele, e não quis assistir a um show da Nana Caimi porque achava que "não valia a pena" - a pena, sabe o que era? Trocar de roupa. Uma mulher assim pode ser normal? Não sabia que sabia pintar, e até hoje pensa que não pode. Como querem que uma pessoa assim seja normal. Minoria, minha gente, minoria.



....




RETIRADO DO MEU QUERIDO DIÁRIO
Cheguei à severa conclusão, depois de uma autocrítica avassaladora, que eu preciso escrever alguma coisa obscena, se quiser continuar upada. Alguma coisa OBSCENA.
Então vou construir uma obsCENA. Uma ÓPERA OBSCENA.

Não preciso ir muito longe para isso, nem preciso me mexer muito. Há obscenidades por toda parte, em qualquer lugar que vá, vejo obscenidades. Agora mesmo acabei de ver toda uma obscena família que mora debaixo do viaduto: imundos e comendo restos de comida. E esses meninos obscenos que ficam pedindo esmola no semáforo? Ai que nojo! E as ruas estão cheias de porcarias que esses obscenos mendigam fazem na calçada....sem palavras. Não tem banheiro não, obscenos?

E se quiser mesmo desfrutar uma coisa realmente obscena é ver essas crianças sendo exploradas sexualmente (por supuesto elas gostam dessa obscenidade, dizem alguns obscenos de plantão), e as mães absolutamente obscenas observam por detrás dos coqueiros os gringos entrando com suas filhas nojentas entrarem no hotel, e ficam embaixo esperando elas jogarem coisas como bananas, moedas, roupas, qualquer coisa que o vento não arraste para muito longe. E a polícia contagiada pela obscenidade, olha para o outro lado, preocupada com os relógios e celulares dos passantes, obscenamente lindos e caros.

Olha, quer saber de uma coisa? A vida tem um lado muito obsceno, really. Deve ser o lado em que as pessoas se divertem. A resto parece puro tédio.







Olga Mota

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