domingo, 7 de novembro de 2010

A Mocinha


Abraços dados, beijos trocados, e enfim sós - ela e o guarda-chuva. A noite gelava os ossos. Escondido por debaixo da soleira encontrou o jornal e o tédio dissipou-se por alguns instantes enquanto a mocinha devorava a folha dos classificados.

Estendeu as cobertas em cima do colchão sujo e esquentou um pouco os pés debaixo do chuveirinho de água quente. Depois, ajeitou-se maciamente sobre o lençol encardido e começou a orar.Tinha-se tornado uma pessoa calada, introspectiva. Aprendeu tardiamente a oração, mas já mantinha um convívio secreto com Deus nas noites solitárias em que o sono não vinha para abrilhantar seu mundo com sonhos cheios de cor. Falava intimamente com Ele, como se fala a um pai. Dizia dos seus medos, da sua solidão, dizia da tristeza, das saudades, das possibilidades, e dos seus desejos. Falava abertamente e com todo o respeito. Era-lhe tudo.

Naquele dia, quando tinha voltado da festa, o vento abriu a porta intempestivamente, e a mocinha viu um vulto invasivo e rápido se esgueirando rapido e rasteiro através da claridade da rua, até que a porta fechou novamente com forte pancada. Sentou-se na cama e sentiu através da sua nudez o frio da noite. Depressa, enrolou-se no velho lençol e a conversa amigável que estava tendo com Deus transformou-se num pedido desesperado de socorro.

- Meu Deus, meu Deus, me acuda. Não deixe que nada de mal me aconteça. Amém.

Sabia de histórias terríveis de mocinhas que foram estupradas e mortas e depois deixadas abandonadas em qualquer estrada, ou rua ou lamaçal, ou beco. Fechou os olhos enquanto os lábios ardentes murmuravam a súplica agoniada. Sentiu um movimento próximo ao seu corpo, era uma pessoa. Desesperada, a mocinha não conseguia abrir os olhos, só a boca alargando-se na oração que se tornava um grito mais e mais alto, cada vez mais alto.

A mão tapou-lhe a boca com força e ela engoliu as palavras até o engasgo, quando abriu os olhos grandes e sem luz, apavorados.
O homem era forte, alto, cheirava à bebida e sua aparência era a de um homem sem alma. Em algum momento, ele precisou das duas mãos. Foi quando a mocinha aproveitou e gritou com muita força. O miserável, por um instante, abandonou a barguilha da calça imunda e tentou novamente tapar sua boca. Mas ela virava o rosto de um lado para outro e ele não lograva o que queria. Gritava cada vez mais alto, o que deixou o bandido atordoado.

De repente, com outro estrondo parecido ao primeiro a porta abriu-se violentamente e um vento forte e molhado invadiu o pequeno cômodo, a luz do poste que ficava em frente iluminou de maneira, eu diria, extraordinária o ambiente. O tarado, completamente atabalhoado, saiu a correr pela rua abaixo, sem saber a que atribuir o estardalhaço da porta que se abria e fechava continuamente e aquela luz terrivel que o cegava.

A mocinha apressou-se em fechar a porta, passou a trava de ferrolho grande, voltou à cama, e continou sua conversa com Deus, depois de dizer "obrigada"!

Olga Mota

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