sexta-feira, 12 de novembro de 2010

As memórias da menina-coisa


Ela sempre soube que tinha nascido para escrever. Pensava que a vida ensinaria, alem de um regular domínio da Lingua. Mas a fonte, o jorro de onde deveriam sair as idéias, as palavras se concatenando, dançando a lúdica, ou nem tanto - dança é que era o jogo. As idéias estavam soltas no ar, em outros escritos, nos filmes, nas músicas que escutava. E ela sonhava coisa pueril: vou ser poeta. Mas não deu. Poeta é muito difícil (ser), mas a alma, ah essa!, parecia ser poeta. Pois não tinha o ingrediente sofrimento? Aquela alma dela não descansava. Andava aflita pelas partes que lhe cabiam no espaço mundo, mas ela mesma, infeliz não cabia em lugar nenhum.
Remotos e outros nem tanto, os lugares passaram por sua vida andarilha, mas não teve nada de seu. Tudo lhe escapava pelas mãos. Muitas vezes era como se não existisse.
Um dia, arrumou a mala e partiu. Nunca mais voltou, Ficou por aí, até que decidiu escrever suas memórias. "Memórias, ora direis"! - que memórias, se a moça nem tinha vivido? De inventar personagens e viver a vida deles. Sim, por que não? Ninguem precisaria saber daquela cena real, daquele dia em que o tio colocou a mão por entre suas pernas, o outro tio, em outro lugar (não mais nas pernas), o pai na rede com uma vagabunda, o médico, o sacerdote, ...bom, ninguem podia saber Isso era assunto reservado, proibido para menores. Naquele tempo (?) os adultos podiam fazer o que quisessem com as crianças. Menina não diz essas coisas, menina não se mete em conversa de gente grande, e por aí vai. O segredo é o medo. Restrita ao domínio do medo, ela, meio doidinha, ninguem iria acreditar. Mais uma fantasia da menina que toca violão, escreve versinhos, vive a sonhar, voando entre nuvens fantásticas e nadando no mar que criara para sua alma dolorida, subterfúgios que o tempo roeu. Tentava ser feliz, a despeito de tudo. A felicidade era seu rumo, mas, como um barco sem prumo, naufragou. Não sabia que isso um dia iria doer. Pensou ter esquecido, pensou que era assim mesmo, que assim era ser mulher.

E deixou que o tempo levasse as lembranças como leva essas folhas secas que voam por ai, ao sabor de outonos e primaveras mal curadas. 
Num dia era inverno, noutro, verão; e escrevia, escrevia, na busca da sua verdade. Nada então, a mão que detonava, impediria de voar. Sim, era como se, não só os tios, ou o pai - a tivessem transformado num objeto, ela mesma estava-se obrigando, singelamente à fatalidade de aceitar o fato como certo: ela era uma coisa, não era um pessoa.
ELA era a culpada: "Sua filha é linda, é tão perfeita!". E as maõs a alisavam e ela era tão bonita, tão perfeita.

Escreveu então, suas memórias. Ainda vive até o dia de hoje, mas sempre chora quando vê uma criança ser violentada em palavras, pensamentos, ou ações.

.......


Quando a menina-coisa virou mulher-objeto começou a escrever uns versinhos, umas coisinhas que postava numa comunidade onde havia gente muito interessante, gente nada interessante, gente arrogante, e gente com varias personalidades (o que na comu chamam "fake"). Certamente ela estava encaixada numa dessas categorias ou senão em todas.

A editora devolveu-lhe os papéis digitados em fonte Roman 12, e disse-lhe rispidamente: - De quinta categoria! Assim mesmo, sem dó nem piedade.

A mulher - vamos dar um nome à criatura: Macabéa Alice, não se importou muito. Ela sempre soube disso. Os professores diziam: menina, continue escrevendo, ela rasgava. Os cadernos cheios de poeminhas rimados que ela aprendia a fazer na escola com aquela professora de Português, Tania, rasgava todos, às vezes até queimava. Daquele tempo, já tinha instintos autodestrutivos. Coisas de menina-coisa.

"O público (alvo)*sentido amplo, prefere poemas eróticos-sensuais, com toques pornográficos, alguns palavrões ou insinuações explícitas (existe?). Querem cenas de cama, mulheres ardentes e violêntas, poedrosas, Nada dessas meninas meiguinhas que vem do interior, etc, etc, isso é lixo. Realmente, seu estilo é meio ruinzinho: Um dia ela é escritora na variedade poesia, outro dia escreve contos (que são chamados nanocontos, o que até hoje não entende - deve ser questão de espaço na comunidade), e outro dia qualquer ela tem uma espécie de diarréia verborrágica, despeja um conjunto de palavras que desencontradas formam uma visão até, por que não dizê-lo, ó céus - profunda da forma como ela se vê. Centrada em si mesma, nada de poesia social, feminista. Nada. A menina-coisa só escreve para não morrer mais cedo do que o previsto nas contas do Diabo.

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