domingo, 7 de novembro de 2010

"Querido Diario"

(Material necessário para montar o cenário: uma mesa com computador em cima, um espelho, um biombo, um cabide com roupas, sons de gatos miando, música, microfone junto ao teclado do computador. Abajur lilás. Objetos de maquiagem em pequena mesinha, sofá, quadros encostados na parede do fundo, cavalete com uma tela a ser pintada, tintas e pincéis, porta e janelas falsas)


Título:
Querido Diário” a Quatro Mãos ou O voo da mulher que nunca saiu do chão – O Conto - Teatro Abstrato


I PARTE – Narradores (um afetado e outro não) e personagens (duas mulheres),e cerca de cinco pessoas que ficarão mexendo no cenário. 


O sol do Ceará é aperreado e daqui a pouco vai estar querendo se exibir. Alçou o par de tênis que acabou de pagar na décima suave prestação e voou em direção à beira-mar. Lindos, lindos, lindos. Estava cheia de lindos lá. Por que não começar o voo interceptando um desses bonitões e convidando-o para ouvir os Rolling Stones em casa hoje a noite? Misto de intrepidez e total falta de vergonha de levar um fora, o que é previsível. Mas, para surpresa sua e dos telespectadores, ele aceita. Ele vai! Então ela corre para casa e começa o ritual: banho de lua, etc, etc...Isso demora muito. Arrumando o cenário: Os gatinhos que ronronam nas paredes estarão desligados. Jura que a perna esquecida vai ser devidamente recolhida ao armário de louças, e o sofá vai ficar coberto com um luxurioso xale de seda marroquina, um perfume inebriante misturado ao discreto francês vai rodopiar no ambiente discretamente libidinoso. Não, não vai colocar nenhum video pornô - não faz a sua, nem vai tomar leitinho morno nem mingau de avéia, eca! (oops...foi mal), e sim algumas doses de whisky twelve years old e vão cair no samba do Martinho. Isso, depois da xaropada de Rolling Stones. Isso já passando da meia-noite.A quantas andarão suas pernas acostumadas a andar apenas por lugares tão comuns..Voilá, vamos ver. A casa estará devidamente desarrumada como seus versos, e os quadros na parede serão todos maiúsculos. Nada de veleidades, subterfúgios, coisas banais, loucuras mesmo. A vida é uma festa, pois não? Cotidiano pirado, cheio de aventuras sexys, estrangeirismos (oh my God, I don´t enjoy italian man), cotidiano inventado, com bastante tempo de sobra para a produção pois, afinal de contas não tem cabimento sair (ou ficar) sem uma boa produção, uma maquiagem adequada. O voo cego pode ser assustador.



Cena II -PARTE VI (acho que não está boa como a 1aNarrador Um (o afetado) continua:


Convenhamos, na sua idade, um voo cego pode ser terrivelmente assustador.

(O público deve estar atento, esperando o desenrolar do capítulo sex and the city, e os ajudantes de cenário movem as coisas, colocando o xale marroquino sobre o sofá, fazendo a maquiagem da moça, e uma certa confusão porque, credo cruzes! O lugar é mínimo, tal como o cachê.
Penso que não será necessário colocar em cena tantos ajudantes, então serão apenas dois. É suficiente)

O narrador, aos ajudantes:
- Ei, é melhor esconder tambem os sapatos que estão secando lá na janela da área de serviço (ela chama aquilo de área de serviço). Ah, e não pode esquecer de guardar na gaveta a foto do filho ...essa palavra eu não falo.

Dirigindo-se à platéia:

Vai que o cara é do tipo que não gosta de falar de morte, o coitado pensa que é eterno e blá blá blá... Pode ter um efeito negativo, paralisante, brochante... Daí, é um passo para ele pensar que a moça tem um passado, sabe essa coisas absolutamente vulgares: mortes na familia, revezes financeiros, cirurgias abdominais? Não, nem pensar. Ela é a própria alegria e felicidade, livre e light, e ... magra! Encarnada e desencarnada: um enigma decifrado. O gato não pode nem imaginar que a criatura pertence à Acelfe e vende seus quadros horríveis em galerias de Arte por uma quantia irrisória. O gênero é o seguinte: nada de meios termos – rico ou pobre, feliz ou deprimida. Nada de mais ou menos. É tudo ou nada.
- Essa arte de hoje é horrível! (oh, MY god!).
Ela terá que fazer o abominável esforço de explicar o que é arte abstrata. Ufa! Melhor esconder os quadros.

(os ajudantes saem com os quadros e ela asperge (ou seria esparge?) perfume no ar).

enquanto busco nomes

. Narrador 2:

Mais uma vez... um voo não alçado. Um sonho de ser livre, simplesmente um texto. Um apartamento desarrumado, garrafas espalhadas pelo chão, vestígios andróginos. Não tem certeza se trocaram os textos algumas vezes marcando novos encontros.”Soltaram as garras dos eus presos no vazio da solidão e viveram momentos que embalaram nas garrafas do velho uísque, jogadas ao mar do Mucuripe ", era a fala, a dica. No ínterim, ficarão às mercês dos olhares que se cruzam no calçadão da beira-mar e uma "saudade imensa vagando" nos versos. A platéia enciumada abandonou o teatro. Ficaram apenas os dois e a esperança do beijo louco que transpirava dos seus olhos famintos.

A lembrança parou naquela música que foi o último som que lhe saiu da garganta. Negou abraços e beijos na despedida. Não os podia. A lua ficou com ela até fechar a última janela e já era o outro dia quando deitou a cabeça no travesseiro macio: sua casa, sua cama, seus livros de cabeceira pareciam estar inundados dele. Algo estranho havia conspurcado aquele ambiente tão familiar. Sentiu-se como se lhe tivessem roubado a cena. Mera atriz que o banho não desmascarara. Enquanto debatia-se em meio aos perfumes que exalavam de um corpo que já não estava, uma sombra vagava bruxuelante na sua mente, incômoda como um desejo insatisfeito. Fantasmas velozes atravessavam o quarto (não! eram, criações do medo). Diante do espelho abafou o pranto sentindo-se partida em mil, e o dever de ir até o fim receber o Oscar. A festa é no final.
Apenas mais um pouco e se transforma em bruxa. Verso que se faz dentro da noite veloz...quadro Dali...surreal... visões que se desfazem em cena. Virou o corpo para o lado que completa o ritual e engoliu as pílulas comprimidas no invólucro branco. Mais um pouco e se apaga junto com a lampadazinha da cabeceira, enquanto o radinho miudo espalha ainda os Rolling Stones pelas paredes.

Hoje te matei dentro de mim. Passagem ao ato.

Ela está lendo um texto, tentando decorar. Sozinha no quarto, apenas iluminado o local da cama. O resto do cenário está escuro. Ela gesticula bastante e encena o personagem.

Narrador afetado (misto de diretor cênico):

- Faltam três dias para a estréia, e essa criatura ainda está aí, apegada a esse papel, não sabe nem seu próprio nome, essa louca indefesa.
Dirige-se à atriz:
- Mulher, vamos com isso. Acorda, sai desse quarto escuro, toma um banho.
Aos cenaristas que estão trazendo as telas de volta e arrumando a bagunça do cenário da noite anterior.
- Cuidado com isso aí, rapazes! Ai meu Deus, se não sou eu...
O cenário está de novo como no princípio.
Ela atira os papeis no chão e volta-se para o Narrador Um bastante irritada.
Calma ae! Ainda nem bem acordei...Calma. Tenho um gosto de pólvora na boca e o terror transparece no meu rosto inchado, não ta vendo?
(corre ao espelho). Estou in cha da!, não ta vendo?

- Ora, quem mandou beber daquele jeito ontem à noite? Ressaca, né, meu amor....rsrs

Pela falsa janela, o grito de um vendedor de tapioca (cenarista gritando:)
- Olha a tapioca, olha a tapioca!
Gargalhadas....
Ela lê em voz alta:
"Hoje amanheci como quem não amanheceu
Na boca um gosto de pólvora, um som de terror
No espelho meu rosto transparecia inchado
Como de lágrimas tomado
quebrantado pela dor..."

(Pela janela adentrava o som do dia:
- Olha a tapioca! Gargalhadas)
Que vontade de voltar para o sonho e não ouvir mais nada.

"Tenho um corpo feito de alegria
Que recusa o viver a noite
Mesmo assim, agora, também
Parece-me que se recusa
Teimoso, a viver o dia"
Cenário em movimento novamente. Os homens arrastam tudo para um lado, amontoam tudo na parte escura do palco, deixando apenas a tela no cavalete. Ela vai começar a pintar um quadro. Tem cinco minutos. Alguma coisa já se vislumbra nos borrões da tela. Parece louca, no seu gestual frenético e ousado. Muito vermelho, alaranjado, amarelos e azuis tonais.

PARTE NOVE

Herr Direktor não gostou dessa fala: como trancafiar a louca no celeiro. A fala era absolutamente intempestiva. Era apenas um gesto metido naquele jeito impostor.O quadrado da hipotenusa? Valha-me, era sem sentido. À medida que venço os tempos, um a um, o horizonte se afasta, e isso é muito bom. Às vezes, desalojada, aflita, dentro da escuridão que a tristeza acende. Resposta das estrelas aos meus versos. Grande coisa! só um gesto de perdão e a cena muda. Os cenaristas quebraram o espelho. O esquecimento é a única forma de viver...? Duvido. Só o coração sabe o que pode acontecer diante da morte, uma dádiva cruel. Vejo a morte todo dia e me arrepia o desassossego. Asas? Sim, as quero. Voar de vez em quando é uma forma de morrer, estou certíssima do assunto. Até quando abro os olhos pela manhã estou arrependida. Difusa e estúpida. Atirando pétalas e balas de canhao ao estilo anos 60. Paz e Amor. Deve ser por causa disso que sou viciada em protestos e um pouco feminista, só um pouco, porque os machos me abalam sobremaneira quando os estou amando Radicalmente apegada ao sutiã. Não saio sem o sutiã e nem as lentes de contato. Deixem-me à calma. I want to be alone. Let me. Nas minhas idiossincrasias (você odiava) só encontrei seres clandestinos que me abandonaram à solidão. Eram outsiders. Perdão, tenho que pedir quantas vezes? Setenta e sete vezes setenta e sete. Até que meu coração esqueça e não repita a distração. Factível. Escrevendo irreversivelmente e ilegível. Escoando palavras com tinta por cima, abandonando o dia, que se vinga, feioso. Salto fora, vou dar uma volta no jardim imaginário e sentir o cheiro das flores de plástico. Rebarbas, rebordas, é a tinta secando, fazendo um ato de amor. Colorir agora, desfazendo os nós amarelos. Chega de pagar vexames, ou melhor, micos, isso, pagar mico. Desafina um pouco, desarruma a roupa, sai a La francesa ou a La carte, veste de novo aquela roupa assassina e passa pó na cara. “Não gosto de mulher que brilha”, você repetia, e eu ia ao banheiro passar pó no rosto, enquanto

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